Por Clemente Ganz Lúcio|28/08/23|Artigo, Economia, Primeira Página
O retorno do CDESS – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável, também chamado de Conselhão, é uma das importantes iniciativas do governo federal para retomada da participação social e o diálogo. Trata-se de uma instância de assessoramento à Presidência da República e composto por mais de duas centenas de pessoas oriundas das mais diversas inserções econômicas, sociais, políticas e culturais.
O presidente Lula criou, no início do primeiro mandato em 2003, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, órgão majoritariamente da sociedade civil e de caráter consultivo da Presidência da República. O objetivo nesse artigo é destacar alguns passos dados na trajetória coletiva daquele grupo de 90 pessoas oriundas de diversas organizações da sociedade e para quem o presidente Lula declarou em uma das primeiras reuniões:
- “Se vocês estão aqui só para falar bem do Governo, erraram. Se vieram aqui só para falar mal do Governo, erraram. Se vieram aqui só para se queixar, erraram ainda mais. Este Conselho – foi dito no início e vou repetir agora – é a primeira vez em que a sociedade civil organizada, através de suas entidades e das mais diferentes instâncias em que ela se organiza, tem a oportunidade de dizer o tipo de Brasil que a gente deseja, e o tipo de coisas que podemos fazer no país.”
O presidente tinha muito claro o espaço de diálogo que o CDES proporcionava. Na primeira etapa dos trabalhos, o CDES produziu seis Cartas de Concertação que apresentam as concepções presentes na partida do Conselho. “Ação Política para a Mudança e a Concertação” é o título da primeira Carta que afirma:
- “Os interesses contrapostos, legítimos e ilegítimos, fazem parte da vida ‘espontânea’ de qualquer povo e de qualquer país, mas a produção de um sentido para a história é sempre uma decisão consciente dos sujeitos políticos.”
Constata-se, no marco das análises do Conselho, que não há no país a cultura do diálogo social em sentido amplo, mas que é necessário criá-la, na perspectiva de
- “um esforço que objetiva a celebração de um ‘novo Contrato Social’ – uma nova vontade política majoritária para recoesionar a sociedade brasileira na construção consciente de uma nação moderna, democrática e socialmente solidária.”
A terceira carta, de meados de 2003, trata dos “Fundamentos para um Novo Contrato Social”, na qual se afirma a necessidade de a sociedade construir uma nova agenda para o desenvolvimento cujo conteúdo foi aprofundado na quarta Carta: “O Desafio da Transição e o Papel da Sociedade: a Retomada do Crescimento”.
Há um grande esforço, no primeiro ano do Conselho, para formular as bases e os elementos para a construção de um amplo espaço de negociação de um acordo nacional para o desenvolvimento.
É interessante observar como as ideias gestadas no Conselho foram tomando corpo e estavam coetâneas às políticas de governo, aos planos, aos programas e às políticas públicas. O que não fica tão claro e evidente são os compromissos vinculatórios dos sujeitos coletivos às medidas adotadas a partir daquele diálogo social.
Das Cartas de Concertação para a Agenda de Desenvolvimento
Em meados de 2004, o Governo já havia passado pela dura fase de teste de resiliência que o mercado aplicava sobre o presidente ao verificar a conduta do Governo em relação às regras, aos contratos e à política econômica de controle inflacionário. Naquele ano, o presidente começou uma reunião do CDES resgatando essas questões e apresentou o centro da questão que queria propor. Em minhas anotações ficou registrada a seguinte fala do presidente Lula:
- “Precisamos olhar para o nosso futuro! Temos que fazer escolhas! Escolhas estratégicas! Escolhas para que o Brasil se apresente como um país desenvolvido!
Vocês já deram demonstração do que é possível fazer. Estou aqui hoje para pedir uma nova contribuição. Meu governo tem que fazer escolhas, novas escolhas! Então, na diversidade que vocês têm de opiniões, perspectivas, propostas e visão de futuro, quais são as escolhas estratégicas que o Governo deve fazer hoje para que o Brasil se recoloque na trajetória do crescimento econômico e do desenvolvimento social? Isso é uma tarefa para mais de um Governo, não é? Então, qual escolha devemos fazer hoje para deixarmos construído um legado robusto que sustente nosso desenvolvimento?”
Em pouco mais de um ano de trabalho elaboramos um documento partindo de mais de 350 diretrizes propostas pelos conselheiros nos diversos espaços criados para a formulação de propostas como reuniões, grupos de trabalho, oficinas, debates e seminários. Ao final da primeira etapa dos trabalhos enfrentamos uma questão de fundo: quem apresenta 350 diretrizes fez escolhas estratégicas? Foi isso que o presidente nos solicitou?
A resposta a esta questão nos levou a outro patamar no processo de construção da demanda pelo presidente. Percebeu-se, primeiro, que aquelas diretrizes reuniam as mais variadas demandas e propostas setoriais. Reorganizadas, poderiam ser incluídas em um Plano de Governo e, de alguma maneira, poderiam ser tratadas ou manejadas nas políticas, ações, metas do Governo nacional ou local.
Mas, não fora isso o que o presidente nos demandara! Ele nos falou do país, de transformação, de algo mais geral e coletivo, de um todo que era mais que a soma das demandas e propostas setoriais que havíamos conseguido sistematizar. Aquilo que tratávamos nas Cartas de Concertação precisava ser produzido: escolhas realizadas no espaço do diálogo social para um novo contrato social. E o presidente nos perguntou: quais as escolhas que devemos fazer para sermos uma país/nação desenvolvido?
Mudamos a perspectiva. Assumimos um outro lugar coletivo para olhar as questões. Retomamos o trabalho analisando aquelas mais de três centenas de propostas, processando e filtrando o que era essencialmente transformador. Depois de muito debate e embate, de muita renúncia, mas também da descoberta da tolerância para ouvir, compreender e comprometer-se com a ideia do outro, chegamos às 27 diretrizes estratégicas apresentadas pelo CDES ao presidente Lula, consolidadas no documento “Agenda Nacional de Desenvolvimento”, entregue em meados de 2005.
A desigualdade foi colocada como problema central a ser superado, consignado no objetivo “de fazer a sociedade brasileira mais igualitária, sem disparidades de gênero e raça, com renda e a riqueza bem distribuídas e vigorosa mobilidade social ascendente”.
A primeira diretriz de ação acordada foi a adoção da equidade como critério para a promoção de políticas públicas, visando criar bases para uma sociedade de características igualitárias. A segunda tratou do papel da educação como política transformadora e de superação das desigualdades.
Os debates que se seguiram com ministros e gestores públicos nos mais variados espaços de diálogo procuravam dar tratamento à diretrizes propostas pela Agenda, sendo seu conteúdo posteriormente incorporado ao PPA – Planejamento Plurianual. A agenda tornou-se nossa referência para a ação coletiva nacional e internacional.
O que essa experiência nos ensina é que há um percurso coletivo de aprendizado para, na diversidade de visões e de interesses, fazer escolhas dos problemas, desenhar as medidas a serem implementadas, achar as fontes dos recursos, identificar as responsabilidades, compartilhar compromissos, tudo feito sob a perspectiva da nação e do papel transformador de um governo e do Estado.
O esforço de formulação, de diálogo e de negociação não foram suficientes para materializar, de forma ampla, os elementos daquela agenda. O “novo contrato social”, que indicávamos nas Cartas e na Agenda de Desenvolvimento, exigiria um esforço político de concertação muito maior do que foi possível naquele momento. Uma tarefa a ser retomada na volta do Conselhão.
2023 e a volta do Conselho
Até 2018, enquanto funcionou, as análises realizadas pelo Conselho subsidiaram, em muitos momentos, a ação do Governo e dos atores sociais. Cartas de Concertação, Moções, Pareceres, Relatórios, entre tantos outros documentos foram produzidos sobre uma ampla gama de questões e apresentados ao presidente, aos ministros e aos gestores públicos. A cooperação internacional foi promovida. Formas inovadoras de produzir a análise de problemas foram criadas, bem como novas maneiras de apresentar os resultados dos estudos visando o diálogo social.
O Observatório da Equidade atuou nessa perspectiva com dois trabalhos, um sobre educação e outro sobre a questão tributária. Ao longo dos anos o Conselho se posicionou sobre grande parte dos temas que estiveram presentes no debate nacional, sempre com proposições construídas no espaço da diversidade e do diálogo, com efetividade em muitas das suas proposições presentes hoje nas políticas públicas.
Com o novo governo Lula, em 2023, o Conselhão voltou mais amplo, para atuar em um novo contexto nacional e internacional de enormes desafios. Proteger e fortalecer as democracias, suas instituições, organizações e movimentos; colocar-se na fronteira da inovação tecnológica, da digitalização e da inteligência artificial, com as enormes oportunidades que oferece e, ao mesmo tempo, enfrentando os severos riscos que estão se colocando; articular alta capacidade de investimento em infraestrutura econômica e social; coordenar uma política de neoindustrialização integrada com as iniciativas que ocorrem em outros países; tudo articulado para superar as desigualdade e promover um desenvolvimento ambientalmente sustentável.
A experiência anterior do CDES é uma referência para os novos caminhos que serão trilhados nessa nova etapa. Naquela longa jornada de diálogo social, se aprendeu coletivamente a dar tratamento aos problemas a partir de diferentes concepções e visões, a realizar um esforço para ouvir e compreender o outro, com atenção para uma abordagem propositiva que agrega tolerância e diversidade. Foram ensinamentos que podem ser apropriados nessa nova etapa.
“Se o mundo deve conter um espaço público,
não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida de homens mortais.”
Hannah Arendt em “A Condição Humana“
Bibliografia:
Bruno Gaspar Garcia, “Concertação, desmobilização, reconfiguração”.
IPEA, “A experiência do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social como espaço de concertação nacional para o desenvolvimento”.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli